segunda-feira, agosto 04, 2003

para quem gostou do texto publicado mais abaixo, eis mais um trecho, no entanto, não tão divertido, mas muito bom. Para minhas pesquisas e entendimento... ótimo texto... para vocês que realmente gostaram do outro texto, guardem um tempinho para ler este, pois é longo e um tanto denso...

'A hostilidade com o público é uma das principais diretrizes do modernismo, e os artistas podem ser classificados conforme seu engenho, estilo e profundidade. Assim como alguns temas óbvios, esse foi ignorado. (É impressionante como tantos historiadores modernistas arremedam a sombra do curador do artista, fazendo o trânsito desviar-se da obra.) Essa hostilidade está longe de ser insignificante e comodista - embora tenha sido ambas as coisas. Pois por meio dela trava-se um conflito ideológico de valores - da arte, dos modos de vida que a rodeiam, da matriz social em que ambos se inserem. Depreende-se facilmente a semiologia recíproca do ritual de hostilidade. Cada lado - o público e o artista - não é tão livre para romper certos tabus. O público não pode enlouquecer, isto é, transformar-se em filisteus. Sua ira deve ser sublimada, já uma espécie de pré apreciação. Ao cultivar o público com hostilidade, a vanguarda deu-lhe a oportunidade de superar a afronta e exercitar a vingança. A arma da vingança é a seleção. A rejeição, de acordo com o roteiro tradicional, nutre o masoquismo, o sentimento de injustiça e a ira do artista. Gera-se a energia suficiente para que tanto o artista quanto o público achem que estão cumprindo seus papéis sociais. Cada qual permanece claramente fiel ao conceito que o outro tem de seu papel - o elo mais forte do relacionamento. Lançamentos bons e ruins são rebatidos de um lado para o outro numa charada social que oscila entre a tragédia e a farsa. Há uma troca de passes ruim que é fundamental: o artista tenta convencer o colecionador de sua obtusidade e insensibilidade - facilmente projetadas no material de qualquer um a ponto de querê-lo -, e o colecionador o encoraja a expor sua irresponsabilidade Uma vez que se dê ao artista o papel insignificante da criança autodestrutiva, ele pode distanciar-se da arte que produz. Suas crenças radicais são interpretadas como os maus modos esperados pelos negociantes supremos. A zona militarizada entre o artista e o colecionador está cheia de guerrilheiros, enviados, espiões duplos, mensageiros, e ambos dominam facções com vários disfarces enquanto servem de mediadores entre princípios e dinheiro.

Em seu lado mais sério, a relação artista-público pode ser interpretada como o teste da ordem social por meio de propostas radicais e com a assimilação completa dessas propostas pela estrutura de apoio - galerias, museus, colecionadores, até revistas e críticos das instituições -, desenvolvida para permutar o sucesso pela anestesia ideológica. O principal meio dessa assimilação é o estilo, um constructo social estabilizador, se é que já houve algum. O estilo artístico, seja qual for sua natureza milagrosa e determinante, equivale à etiqueta social. É uma virtude consolidada que estabele um senso de localização e portanto é indispensável para a ordem social. Aqueles que pensam que a arte avançada não tem relevância contemporânea ignoram que ela tem sido um crítico sutil e incansável da ordem social, sempre experimentando, fracassando em meio aos rituais do sucesso, tendo sucesso em meio aos rituais do fracasso. Esse diálogo artista-público proporciona uma boa definição do tipo de sociedade que construímos. Cada arte concedeu licença a um estabelecimento, onde ela se acomodou à estrutura social e às vezes a confrontou - sala de concertos, galeria de teatro.

(...)

Com o pós-modernismo, artista e público ficaram mais semelhantes. A clássica hostilidade é atenuada, quase sempre, pela ironia e pela farsa. Ambos os lados mostram-se bastante vulneráveis ao contexto, e as ambigüidades resultantes empanam o discurso deles. A galeria comprova isso. Na era clássica em que artista e público estavam polarizados, a galeria manteve seu status quo abafando as próprias contradições com os imperativos socioestéticos prescritos. Para muitos de nós, o recinto da galeria ainda emana vibrações negativas quando caminhamos por ele. A estética é transformada numa espécie de elitismo social - o espaço da galeria é exclusivo. Isolado em lotes de espaço, o que está exposto tem a aparência de produto, jóia ou prataria valiosos e raros: a estética é tranformada em comércio - o espaço da galeria é caro. O que ele contém, se não se tem iniciação, é quase incompreensível - a arte é difícil. Público exclusivo, objetos raros difíceis de entender - temos aí um esnobismo social, financeiro e intelectual que modela (e na pior das paródia) nosso sistema de produção limitada, nosso modo de determinar o valor, nossos costumes sociais como um todo. Nunca existiu um local feito para acomodar preconceitos e enaltecer a imagem da classe média alta, sistematizado com tanta eficiência.

ibid, 81-85.

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