como diria Hannah Arendt: (...) Deus criou 'o' homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam 'do' homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse um homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. (...) Mais ainda: para todo o pensamento científico existe apenas 'o' homem - na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só existe 'o' leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões. (ARENDT, H. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1999. p 21)
o homem - sexo masculino - é um ser de grande potencial para abstração... abstrair é com ele mesmo...
na arte, percebe-se facilmente isso quando o corpo se transforma em tema... é em meados da década de 60 que surge o que foi intitulado Body Art. Os artistas do corpo trabalham sobre seu próprio corpo como material, ao mesmo tempo em que o corpo também é tema, pesquisa e experimentação. Para a performance, a body art adicionou a possibilidade do uso do corpo como meio de expressão, no entanto, que não se fecha nele mesmo.
E é quando o corpo se transforma em tema que a diferenciação homem/abstrato e mulher/específico fica mais clara. Pois toda vez que o homem fala em 'o homem', pensa-se num ser humano geral, generalizado, senão transcendental. Mesmo a mulher, sempre retratada sob a ótica masculina, é uma mulher ideal, dentro dos padrões vigentes na época. Isto se não for a soma de diversas mulheres.
Pois bem, através da body art, os artistas (em geral) tomam o corpo num sentido de desmitificá-lo, mostrá-lo como o é. Mas é com as artistas mulheres, principalmente com a arte feminista, que o corpo é retirado de um pedestal idealista e tratado como um tema concreto. O corpo da mulher sempre foi visto (por olhos masculinos) como um objeto de desejo e, em geral, o uso deste corpo sempre foi voltado a sedução ou a procriação. Ao se voltar ao corpo, a mulher está extraindo todo um pensamento de uso de seu corpo, de um corpo utilitário, e talvez ela esteja descobrindo pela primeira vez o que realmente é o seu corpo, que não seja através de um pensamento masculino.
Ao tratar o corpo, o artista homem o trata, geralmente*, como corpo, simplesmente... o corpo do ser humano, um corpo geral ou um corpo biológico. A potência do corpo, o alcance do corpo, o corpo como possibilidade.
Já a artista mulher, ao tratar do corpo, fala do corpo feminino, real e concreto, único e diferente de qualquer corpo, diferente mesmo de outro corpo feminino. O corpo cru, extraído de qualquer fator estético previamente imposto.
* p.s. considero uma excessão os Cremasters de Matthew Barney por tocar em muitas questões relacionadas ao corpo e a sexualidade masculina!
Bem... sobre a questão do corpo, gostaria de fazer o paralelo entre dois artistas, de certo modo para ilustrar o que escrevi acima e para marcar um pouco mais essas diferenciações.
Orlan
Stelarc
Primeiramente, vamos falar das similaridades... ambos são contemporâneos... geração 70. Ela é francesa, ele australiano (ou seja, fora do centro comercial da arte: Nova York). Ambos iniciam explorando o próprio corpo e logo se dirigem às novas tecnologias.
Bem, Stelarc parte da exploração do próprio corpo. Através da suspensão (que hoje pode se considerar bem popular). Partindo para as novas tecnologias, ele vai trabalhar com a robótica. Procurando extender do corpo, caminhando em direção além do corpo. Bem... para resumir, nada como utilizar a sua própria frase/síntese: The body is obsolete (O corpo é obsoleto).
Orlan é uma artista feminista. Trabalha com performances e opera, a princípio, dentro do sistema da arte, através e contra seus signos já construídos e impostos. Como exemplo esta releitura de Courbet:
Courbet, Gustave
A Origem do Mundo / L'Origine du monde - 1866
Oil on canvas - 18 1/8 x 21 5/8 in. (46 x 55 cm)
Musee d'Orsay, Paris
e
Orlan
L'Origine de la guerre (deuxième version) - 1989
55 x 46 cm
EXEMPLAIRE(S) : 8
Assim como Stelarc, em certo momento Orlan começou a trabalhar com novas tecnologias. Após uma cirurgia plástica necessária ela fez o vínculo com o seu trabalho e começou o que pode ser considerado um dos trabalhos mais potentes, em termos de significado e imagem, da arte contemporânea.
A partir da cirurgia plástica, ela transforma sua própria face. Une todas as imagens já produzidas pelo ser masculino em seu rosto. Cria novas imagens, manipula todos os sentidos do que é considerado o feminino num mundo masculino. E um feminino específico, seu rosto, sua face, seu corpo. Ela derruba com toda relação de identidade ligada a imagem, a face que expressa um carater. Não há mais imaculado, corpo, face.
É uma operação no seu próprio eu, relacionado ao seu corpo, ao universo do seu corpo, corpo este feminino. Algo preciso e concreto, imagem, carne crua, nada abstraída, nada dispersa num 'ser universal'. Uma operação simples que atinge de modo abrupto as mais diversas esferas sociais e intelectuais do que pode ser considerado universal.
Aqui perde-se o sentido do termo "o homem", ou mesmo "o corpo".
Em Stelarc o pensamento já se inicia como algo abstrato, o corpo é abstrato e praticamente comum a todo mundo, ou seja, todos os corpos são obsoletos, o meu e o teu, inclusive. Na Orlan, o corpo é real, como o é. O corpo, seu corpo único e diferente de todos. E é a partir dele, corpo que somente a ela pertence, que somente ela domina, que é um material real, é a partir dele que se forma um pensamento que se reflete nas mais diversas discussões contemporâneas, seja arte, seja cirugia plástica ou seus efeitos sobre a sociedade.
É mais ou menos o que o feminismo fez e está fazendo com a arte, partindo de um eu único, partindo da excessão, tratando de questões que para um ser abstrato-universal geralmente não existem, reinvidicando o que é seu por direito, o feminino, universo feminino.
(e continua...)
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